Há silêncios que se transformam em doença

   Sabem...passei a maior parte da minha vida assim…
Reservada, o 'bicho do mato' da família com um feitio de brandar aos céus (o que ainda hoje permanece), nunca fui popular na escola, bem pelo contrário, era o patinho feio, sofria com alguns colegas, levava tareia de outros, era aquela que nunca era lembrada e convidada, que era a infiltrada pelos professores para conseguir pertencer a algum grupo de trabalho, era ainda mais odiada por ser 'a filha da contínua'. Chegava a casa e ia de imediato para o meu quarto onde passava a maior parte do tempo. Nunca tive namorados até aos 20 anos e isso não me incomodava nada mas deixava me a pensar. Desde cedo tive uma maturidade mais evoluída para a idade que me acompanhava. Não me recordo da minha infância porque talvez tenha tido a obrigação de passar essa fase e crescer rapidamente.
   Em toda a minha vida chorei em silêncio, chorava onde ninguém pudesse ver ou ouvir. Nunca fui de muitas conversas, sempre achei que era perda de tempo e que não ajudaria em nada. Ainda hoje falo o mínimo possível, estou tanto tempo calada que por vezes quando falo a voz falha-me. Escrevia muito enquanto as lágrimas corriam a fio acabando por borrar a tinta da caneta.
Quando me encontravam a chorar a pergunta era 'tens algum motivo para chorar por acaso?', é...sempre tinha, mas ninguem fazia ideia.    
   No divórcio dos meus pais não me expressei como toda a gente esperava, para mim foi um alívio confesso, mas também passei por um pesadelo onde tive de fazer algo que hoje jamais faria e que me doeu com toda a alma. Era apenas uma miúda e uma miúda não deveria ter de passar por uma sala de tribunal. Sabem aquele papel em que andamos a fazer de bola ping pong a trazer e levar recados, a ouvir coisas absurdas e horríveis de um lado e de outro? É...e sabem como dói? Eu sei. E que me livre de algum dia eu fazer o mesmo aos meus filhos.
E ninguém se lembra disso, afinal de contas há uma guerra para ganhar certo e os filhos são os trunfos...
Levei toda a minha vida a emprenhar pelos ouvidos e a 'comer e calar', e mais uma vez ficava em silêncio vingando me num papel branco borrando a tinta. Há relações que nunca foram o que deveriam ser, onde se dizem coisas que ninguém merece ouvir, onde se fazem outras tantas inacreditáveis sem olhar a meios e a fins.

Até aos meus 18 anos tinha sempre o meu porto de abrigo, aquela minha avó que me conhecia como a palma da sua mão. Distinguia as minhas expressões, conhecia cada defeito, cada qualidade, acreditava em mim e lutava comigo. Dava me colo, amor e esperança. Era tudo! E também ela me deixou. Dessa vez eu gritei, muito! E chorei até não aguentar mais, implorei para ir junto a ela mas depois... Não verti mais nenhuma lágrima, mas a dor continuava lá a tomar conta de mim.    

   O meu mundo tinha acabado de ruir e levou com ele o que de mais precioso tinha.
Um a dois meses mais tarde comecei com sintomas, perdi sangue pelas fezes, algumas diarreias...e quando me foi diagnosticado a doença uma das primeiras perguntas que me fizeram foi "recentemente houve algum episódio que mexesse mais com o seu sistema nervoso?' e aí o mundo caiu de novo. Sim houve. Perdi a pessoa mais importante da minha vida e nunca mais a verei. É suficiente?
Foi me dito que o gene da doença já lá estava mas que estava adormecido até então...e que após o descontrolo emocional dos últimos tempos que o corpo tinha arranjado forma de mandar tudo cá para fora, de se revoltar e expressar já que eu não o fazia.
Naquele momento percebi que toda a minha vida guardei em mim dores, choros, gritos que hoje me fazem portadora de uma doença crônica auto imune. Guardei tudo dentro de mim como uma pequena plantação de mágoas, raiva, coisas por dizer e tristezas ao longo de 18 anos, e que foi crescendo até não ter mais espaço para desenvolver formando-se agora numa ileostomia terminal.
Aprendi a reagir e hoje sou apelidada de a 'resmungona e refilona' aprendi a responder, explodo com tudo e se for para abrir guerra... Não esperem de mim o silêncio.
E alivia... Não ficar sofucada com o que tenho vontade de dizer. Agora por vezes até digo demais. E a verdade é que ainda há quem diga que não me conhece, que eu me transformei, que sou outra pessoa e não a menina a que estavam habituados. E sabem? Ainda bem que não.
Infelizmente com toda uma vida nunca facilitada confesso que me tornei de certo modo arrogante, fria e cada vez mais distante.
Continuo calada, chega a ser constrangedor para quem está comigo, não puxo assunto, as respostas são curtas e diretas, é o mínimo dos mínimos. Gosto da solidão, para mim tem sabor a total liberdade.
Tudo isto para vos dizer que... 



Não guardem nada para vocês porque mais cedo ou mais tarde pode correr mal. O nosso corpo é uma máquina surpreendente que não gosta de guardar coisas ruins, transforma dores e silêncios em doenças e pode expressar-se da forma mais bruta alguma vez sentida. É um alívio fazerem e dizerem o que vos vai na alma e pode poupar-vos anos de vida. A saúde é o vosso bem mais precioso bem como a liberdade.  

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