Há mais para além de nós

   Estou quase de saída...deste meio ano de hospital...foram 230 dias, 5520 horas, 30 semanas mais coisa menos coisa....e a criança ainda não nasceu - desejosa que algum dia aconteça - e sinceramente é assustador! É o medo, a ansiedade, a histeria, o pânico e a felicidade tudo embrulhado numa bola gigante dentro do corpo e da mente. Não estou bem em mim confesso, parecendo que não tenho estado sempre muito bem protegida aqui dentro, e agora ir para a loucura que é a multidão, os carros, os barulhos e as luzes... é maravilhoso, mas não é fácil.

   É sair do ninho e experimentar voar sabendo que as asas ainda podem falhar... As pernas tremem, o coração acelera e o receio toma conta de mim.

   Não tenho a consciência do que são sete meses... tenho apenas a noção de que passei por todas as épocas festivas desde o Natal, Passagem de Ano, Carnaval e o meu aniversário... Quase que comia as amêndoas da Páscoa em pensamento.

Hoje digo com toda a certeza que tudo isto foi o melhor do pior! Passaria por tudo novamente, porque hoje sempre que falo no assunto, falo com um sorriso e é fantástico olhar para trás e a ficha que passa é somente de coisas positivas, não me lembro das dores, do que correu mal, das dificuldades... recordo os sorrisos que me foram dados, as palavras que me encheram a alma, o carinho que me aconchegou, recordo as pessoas que hoje permanecem na minha vida e das pessoas maravilhosas que conheci de todas as idades, feitios, patologias e etnias. Tive a honra de conhecer realidades nada fáceis, realidades essas completamente desumanas e que lá fora ninguém quer ver, mas que me fizeram sentir ainda mais pequena que o meu metro e cinquenta e oito. Não somos nada nesta vida, mas há quem seja esta vida e a próxima pela força e determinação com que se agarram a ela mesmo sabendo que o fim lhes tá traçado e que não demorará a chegar. 

   O SrºA que entra no ginásio da fisioterapia todos os dias a cantar uma música nova onde ele próprio é o protagonista desde o som, passando pelos instrumentos até chegar ao coro - É cego, 'um pouco' surdo e amputado de uma perna! 

   O R que não é nada mais nada menos que um verdadeiro exemplo de que existem milagres - 1 vez transplantado ao coração 2 vezes recusadas, esteve em coma e hoje está quase preparado para regressar a casa passado um ano! - Hoje queixaram se mesmo do quê? -

   A C que tem total perceção de tudo, tem toda a sua consciência na perfeição, mãe de um menino e esposa, é também portadora de uma doença degenerativa - esclerose múltipla, anda apenas na sua cadeira elétrica, comunica por texto no telemóvel e tem a consciência de que não passará dali.... 

   A L está a recuperar de 3 operações e está aqui internada porque os familiares simplesmente nunca mais apareceram, não tem filhos, mas tem sobrinhos que é o mesmo que não ter. Tem 83 anos, as ideias já se vão confundindo mas é uma alegria ver aquela senhora principalmente quando me diz que eu tenho 15 anos e que moro lá no cimo da serra. 

Teria tantos mais exemplos para vos dizer que infelizmente há sempre bem pior que nós, que é cada um com as suas, que podemos estar muito mal, mas o importante é olharmos para o lado e ver que nos queixamos mas que a nossa dor ao lado da dor do outro fica a negativo.  Fico agradecida por poder ver todas estas realidades aos 24 anos, dá me sem dúvida outra bagagem, a que falta a muita gente. 

   Tirei proveito de cada dia, tentei conhecer as histórias, ajudei quando foi necessário, chorei quando precisei e segui em frente. Lembrando que estava a andar pelo meu pé e que 'só isso' é espantoso. Não tive preconceitos, não tive problemas em tocar, falar e ajudar pessoas com outros problemas. Seremos sempre todos iguais, e bolas...há pessoas tão especiais. E dói me verdadeiramente saber que vivem apenas para sofrer esperando a sua hora, não faz qualquer sentido na minha cabeça. Para quê? 

Agradeço toda esta fase, todos estes ensinamentos, todos os obstáculos e provas, todas as superações, agradeço de alma e coração ter passado por tudo isto. Eu não escolhi a doença, mas posso sempre escolher o que fazer com ela. E eu escolhi ser melhor para mim...para os outros. Há sempre alguém a precisar do nosso olhar, da nossa mão, do nosso sorriso. 

Foi o melhor da minha vida, e se me dissessem que teria de passar por tudo novamente para o fim ser assim eu não hesitaria! 

  

Agora começa uma nova vida....sete meses depois....num mundo lá fora! Tenho tanto a fazer...